sábado, 2 de junho de 2012

l. APRESENTAÇÃO E JUSTIFICATIVA


     Durante o ano de 2007, trabalhando os escritos de Paulo Freire, passou-se a pensar em alguma atividade que demonstrasse que nós acadêmicos e professor acreditamos que a educação pode fazer algo para transformar a sociedade e emancipar e libertar as pessoas que vivem marginalizadas, silenciadas, dominadas e diminuídas na sua condição e dignidade humana em meio às estruturas excludentes da sociedade neoliberal capitalista.
            Com esse objetivo, um pequeno grupo de acadêmicos, do Centro de Educação/UFSM, começou a desenvolver um projeto de reabilitação do espaço da antiga Estação Ferroviária de Santa Maria, a GARE, incentivando a leitura da palavra e a leitura do mundo. Para tanto, começamos a desenvolver a Hora do Conto, com as crianças daquelas comunidade e a organizarmos uma Biblioteca que atendesse as necessidades daquela comunidade. Inicialmente, conhecíamos aquela comunidade, como uma invasão; no entanto, no decorrer do projeto, trabalhando e ouvindo as histórias destas crianças, compreendemos com elas que aqueles locais nos fizeram não eram uma “invasão”, e sim uma área de “apropriação”.
            Outros projetos de pesquisa e extensão, coordenados pelo professor Celso Henz, que visam colaborar com uma educação libertadora e com a formação continuada de professores,  com seus estudos e diálogos-problematizadores permanentes, nos remeteram a reflexões e a leituras que  nos possibilitaram uma maior aproximação com a realidade dos meninos e meninas da GARE, sobretudo na perspectiva freireana de que “a leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele” (FREIRE, 2006, p. 11). Desse modo, fomos percebendo que aquelas crianças, que apresentavam dificuldades na leitura das palavras, liam o mundo de uma maneira e com uma riqueza que nós não conhecíamos. Assim começou evidenciar-se que: “[...] tanto no caso do processo educativo quanto no ato político, uma das questões fundamentais seja a clareza em torno de a favor de quem e do quê, portanto contra quem e contra quê desenvolvemos a atividade política” (FREIRE, 2006, pág. 23).
As atividades de Hora do Conto acontecem a quase um ano na Biblioteca Pública e há três meses na GARE. Partindo dessas constatações, houve a necessidade de sistematizar os momentos vivenciados, dessa maneira, o projeto que surge com a possibilidade de despertar o gosto pela leitura e de atender integralmente às necessidades da infância, passou a ter o objetivo de possibilitar o desenvolvimento lúdico, imaginativo e crítico visando estimular a participação como cidadãos, tornando-se um agente reflexivo de dados, fatos e acontecimentos do mundo, criando e recriando seu papel na sociedade.
Para a concretização deste objetivo geral foram traçados alguns objetivos específicos: - incentivar o hábito da leitura e da escrita possibilitando o contato com os livros; - desenvolver a imaginação e criatividade; - valorizar a produção dos escritores locais; - proporcionar atividades diferenciadas para a comunidade; - reconhecer a Biblioteca como espaço de cultura e também de lazer.
Inicialmente propomos três perspectivas que norteiam o projeto:
- Desenvolver o hábito da leitura em comunidades carentes;
- Que leitura de mundo é feita a partir e com as histórias trabalhadas;
- Mostrar de que maneira as histórias influenciam na formação do ser cidadão.

            Assim, entende-se que o Curso de Pedagogia, o Centro de Educação e a UFSM podem tornar-se parceiros importantes para que este projeto Hora do Conto se torne apenas um “ler” histórias e palavras dos outros autores, mas a partir delas e com elas desencadear processos dialógico-problematizadores em que meninos e meninas possam “dizer a sua palavra” enquanto leitura do mundo em que estão vivendo (ou impedidos de viver) como gente. Ademais, abre-se a possibilidade de outras acadêmicos da UFSM integrarem o mesmo projeto, dando mais organicidade e dialeticidade a sua formação inicial de educadoras.
A continuidade deste projeto no ano de 2008, implica em pôr em prática essas mudanças. Gostaríamos que, antes de ler ou contar as histórias dos livros, cada um e cada uma pudesse contar a sua própria história.

2. OBJETIVOS


 - Objetivo Geral:

- Desenvolver atividades de Hora do Conto com alunos das escolas municipais e estaduais de Santa Maria, de 1ª a 5ª séries, com crianças e adolescentes das Aldeias SOS e as “meninas” do Lar das Vovozinhas, possibilitando o desenvolvimento lúdico, imaginativo e crítico, visando estimular a participação como cidadãos e o resgate da auto-estima.

- Objetivos Específicos
- incentivar o hábito da leitura e da escrita possibilitando o contato com os livros,
   principalmente com crianças carentes e “idosas” longe de suas famílias;
- desenvolver a imaginação e criatividade, pela ludicidade;
- valorizar a produção dos escritores locais;
- aprender uma leitura crítica de mundo a partir e com as histórias trabalhadas;
            - mostrar de que maneira as histórias contribuem com a formação do ser cidadão e o
             resgate da auto-estima.

3. ERA UMA VEZ...


Geralmente a linha divisória entre a pré-história e a história é atribuída ao tempo em que sugiram os registros escritos. A leitura e a escrita foram os marcos das civilizações antigas. Até os dias atuais, campanhas são feitas para o incentivo da leitura e da escrita das palavras porém, muitos esquecem daquilo que Paulo Freire chamou de “leitura do mundo”. Ao falar em “leitura do mundo”, lembro de Brandão (2005, p. 17-18) que diz:
Quando a gente vai para a escola,  alguns adultos dizem: ‘Vai estudar para ver se você aprende alguma coisa!’ Não é mesmo? Mas elas esquecem que, quando uma criança chega à escola, ela já sabia muita coisa. Ela já tinha aprendido muito mesmo. Primeiro, ela aprendeu com a Vida, aprendeu com o mundo onde ela vive. Aprendeu com os outros: a mãe-e- o- pai, os irmãos e as irmãs mais velhas, os primos e os outros parentes. Aprendeu com as amigas e os amigos de mesma idade. Aprendeu com a vida. Pois a vida que a gente vai vivendo, um pouquinho a cada dia, é uma ótima e incansável professora de cada uma de nós e de cada um de nós.
                Como Brandão bem diz, estamos sempre aprendendo, mesmo quando pensamos estar ensinando. Em uma ocasião, trabalhávamos com o livro: “As Aventuras da família Tamanduá” de Jô Oliveira e Nira Foster que conta a história de uma família de tamanduás que morava em uma fazenda abandonada. Certa vez um homem compra a fazenda e começa a fazer muitas modificações entre elas, expulsa a família de suas terras. Sem ter para onde ir, a família vai morar em baixo da ponte e na fazenda muitas coisas ruins começam a acontecer. O fazendeiro mexe no equilíbrio ecológico do lugar através do uso indiscriminado de agrotóxicos. Assim, se vê obrigado a ir buscar a família de tamanduás para resolver a questão.
            Tínhamos como objetivo principal discutir as questões voltadas ao meio ambiente, entretanto comecei a perceber uma certa troca de olhares, fisionomias que se modificavam a cada página contada, e ao concluir a história alguns questionamentos e depoimentos surgiram. Quando usamos a expressão “invasão” para descrever o modo como a família tamanduá vivia muitas crianças que tinha entre 9 a 11 anos disseram: “Não era uma invasão! Os tamanduás se apropriaram de terras improdutivas”. Neste momento percebi que a maioria deles já havia vivenciado ou vivencia situações semelhantes as da história. E então, começamos a discutir a questão que um menino levantou: “Porque uns tem tanta terra e outros não tem nada?”. Chegamos ao consenso que as “terras” como eles dizem, são mal distribuídas e que todos deveriam ter uma “parte igual” pois assim, todos teríamos as mesmas condições terminando com as diferenças.
            Mas o final da história nos reservava grandes surpresas. Ao lembrar que o “patrão” teve que ir a busca da família as opiniões ficaram divididas, uns acreditavam que a família   não deveria voltar, pois haviam sido humilhados, outros, preocupavam-se com as condições que o fazendeiro ofereceria para ter a família de volta. Esta história, diferentemente da história de vida de cada um, termina com a família na fazenda, em uma bonita casa construída pelo patrão e cedida à família Tamanduá, que recebera algumas terras e lugar para trabalhar.
Quando o texto parecia ter se esgotado, surgiu então a proposta de criar um novo final para esta história e muitas surpresas vieram. Alguns decidiram que os Tamanduás expulsariam o fazendeiro das terras, já outros, propuseram uma sociedade entre eles.
            Dessa maneira refletimos com FREIRE (2000, p. 76), quando diz:

A consciência do mundo que implica a consciência de mim no mundo, com ele e com os outros, que implica também a nossa capacidade de perceber o mundo, de compreendê-lo, não se reduz a uma experiência racionalista. É como uma totalidade – razão, sentimentos, emoções, desejos -, que meu corpo consciente do mundo e de mim capta o mundo a que se intenciona.
            Assim, ao decidirmos utilizar uma proposta freireana, percebemos que alguns “ajustes” precisam ser feitos. Adotando uma pedagogia comprometida com o homem em seu contexto histórico-social, no sentido de orientar consciente e criticamente a libertação das pessoas, jamais podemos cair no erro de escolher as histórias ou levá-las pronta, pois assim estaríamos manipulando os pensamentos e opiniões.  Nosso objetivo é promover a discussão corajosa da problemática e o constante diálogo com o outro.         
Nesta perspectiva, os educadores somos desafiados a oportunizar à criança a ver o mundo, a ler o mundo, a descobrir o mundo e as maneiras de ser gente neste mundo, contribuindo também para a construção de uma cultura humanizadora. Entretanto, a aprendizagem começa antes da aprendizagem das letras; quando se estimula o prazer em ouvir algo ou alguém se aguça a curiosidade de ler, de pensar, de ter autonomia para descobrir histórias que estão dentro de um livro. Essa aprendizagem que a criança vai construindo, ao ser estimulada desde a infância, oportuniza a construção de um ambiente dialógico, onde ela cresce comungando com a vida, não estando à serviço do cumprimento de regras e programas, exigências sem função prática e aplicabilidade a favor da vida. “Semeando” a criticidade e a criatividade, os horizontes se ampliam; ademais, a criança vai aprendendo a participar das decisões e permitir a participação do outro.
A partir do respeito à individualidade e as singularidades de que cada um, se pode ir construindo o coletivo e o bem-comum, garantindo formas de participação para que as pessoas vivam relações solidárias e justas em igualdade de condições, vivenciando sua cidadania. Assim, para que ocorram mudanças nas inter-relações e nas relações sociais, é necessário que cada ser humano integrante da comunidade escolar esteja comprometido com o processo educacional, de forma que todos sintam-se sujeitos, desde o momento de  partilhar e defender idéias, construir regras, propostas, estratégias. Somos aprendizes da arte de usar a palavra em defesa do que acreditamos, porém ainda temos dificuldades em ouvir e aceitar a idéia do outro, em entender que várias idéias, várias culturas podem construir caminhos novos, culturas novas e novas formas de organizar a vida, a escola e a sociedade.
Neste sentido, as histórias infantis têm muito a contribuir, trazendo significado para a criança quando diz algo a respeito da sua vida e do seu mundo. Uma história só prenderá a atenção quando desperta sua curiosidade, estimula a imaginação, ajuda a desenvolver o intelecto, torna mais claras as suas emoções, vem ao encontro das suas ansiedades e aspirações, reconhece as limitações e dificuldades e, ao mesmo tempo, sugere soluções para os problemas que a perturbam.
Ao ouvir uma história a criança fica presa às cenas, imaginando as possíveis seqüências e soluções. O uso de recursos concretos como gravuras, fantoches, maquetes permitem a visualização da história, estimulando a imaginação e concretização das cenas. A ação de ler e contar histórias às crianças permite a concretização das idéias abstratas, relacionando a realidade com as cenas que se sucedem. Essa leitura do mundo antecede a leitura da palavra, gerando uma compreensão do lido a partir do visto, do vivido, do experienciado. Daí a importância de conhecer o contexto sócio-histórico-cultural para trabalhar as diferentes histórias infantis dentro e a partir da realidade, apontando caminhos, possibilidades para a construção de uma nova cultura organizacional, democrática e humanizadora.
Segundo Lajolo & Zilberman (1991), a literatura infantil aguça um imaginário peculiar nas crianças, o qual pode dar-se em duas direções:

De um lado, reproduz e interpreta a sociedade nacional, avaliando o processo acelerado de modernização, nem sempre aceitando-o com facilidade, segundo se expressam narradores e personagens. [...] De outro lado, dá margem à manifestação do mundo infantil, que se aloja melhor na fantasia, e não na sociedade, opção que sugere uma resposta à marginalização a que o meio empurra a criança (Ibidem, 67).

Sim, as histórias infantis trazem em si uma dimensão ideológica, social e histórica conforme o período em que são criadas, contendo valores, conflitos, idéias existentes de acordo com cada época e cultura. Não se trata de não ler e dialogar sobre as histórias dos mais diferentes autores, mas sempre trabalhando no sentido de a, a partir delas, as crianças poderem “dizer a sua palavra”, manifestando a sua “leitura de mundo” e os seus sonhos de “inéditos viáveis”, como tão belamente nos tem proposto o educador Paulo Freire.
Tendo em vista que proporcionar à criança contato com as histórias infantis é respeitá-la enquanto ser humano e leitora, é interessante reforçar a importância delas como um recurso para a motivação e iniciação da leitura da palavra e do mundo. Freire(2001) afirma que mesmo depois de alfabetizados, os indivíduos não deixam de “ler” o mundo ao seu redor. Para que uma leitura seja realmente compreendida, é preciso estabelecer relações com a realidade, pois a aprendizagem da linguagem escrita se dá a nível profundo, não somente no nível de memorização de palavras ou textos. Neste sentido, as histórias infantis podem despertar emoções, posicionamentos e ações para buscar alternativas para modificar o seu ambiente.
O ser humano é criador do seu conhecimento, é aprendiz e sujeito do processo histórico em que vem sendo, sobretudo pela mediação da linguagem, pronunciando a si e a seu mundo com as palavras que vai aprendendo: primeiramente repetindo as palavras dos outros, depois dizendo a sua própria palavra. No momento que ouve, lê, fala, escreve.... algo mexe com suas razões-emoções, desafiando-o a tomar nas mãos a sua trajetória histórica de homem e/ou mulher. Essa processualidade pode começar por meio da criação histórias orais e escritas, criando a possibilidade de vislumbrar, de desejar e projetar muitas transformações.
A necessidade de conhecer e intervir no mundo exige uma certeza de que aprender não se resume em acreditar que tudo é certo e nem de estarmos demasiadamente certos de nossas certezas.  Freire (1998, p.30) nos ajuda a refletir sobre nossa prática quando diz que é problematizando, dialogando, fazendo releituras, contextualizando que vamos fazendo novas descobertas, uma vez que

a leitura verdadeira me compromete de imediato com o texto que a mim se dá e a que me dou e de cuja compreensão fundamental me vou  tornando também sujeito. Ao ler não me acho no puro encalço da inteligência do texto como se fosse ela produção apenas de seu autor ou de sua autora. Esta forma viciada de ler não tem nada que ver, por isso mesmo, com o pensar certo e com o ensinar certo.

O ato de ler, contar histórias encerrando a exploração do texto como se a palavra do autor fosse à verdade absoluta, como se a entonação do contador desse à história um ponto final para o que está escrito nas entrelinhas, a interpretação do educador como única, a história fechada em si não ajuda aos educadores e educandos se tornarem críticos, tendo uma visão contextualizada. Mesmo na ilustração de um livro podemos criar, fazer novas leituras, perceber detalhes que o autor não explorou, porque as visões e leituras de mundo variam conforme a sua cultura e a sua experiência vivida. No momento em que o educando se coloca no lugar dos personagens, brinca com eles, recria e reconta histórias está intervindo, construindo novas alternativas, colocando-se como sujeito, autor da história e de sua própria história de vida.
A inserção crítica do ser humano no mundo se dá como corpo consciente, graças à sua sensibilidade ao contexto e à sua capacidade de reflexão; sem experimentar a realidade e sobre ela refletir não há criticidade, não há conscientização, não há ação transformadora. Por isso, para possibilitar este re-encontro de cada homem e cada mulher consigo mesmo(a) e com o mundo, qualquer esforço educativo libertador deve, através da dialogicidade problematizadora e crítico-reflexiva, sempre partir da realidade, da visão que cada um e cada uma tem do mundo, do trabalho, do conhecimento ou de um determinado assunto; partir do sentir/pensar/agir presente nas concepções e ações dos(as) sujeitos, para a elas retornar com um novo enfoque, capaz de conscientemente forjar novas visões e ações transformadoras. Uma razão-emoção crítico-reflexiva reconhece que homens e mulheres estão em constante interação com a realidade, exercendo sobre ela uma ação transformadora e sendo condicionados(as) pelos resultados desta transformação. É fundamental partir sempre da problematização do mundo do trabalho, das idéias, dos mitos, das crenças, das convicções, das obras, dos produtos, das artes, das ciências, das aspirações, enfim, do mundo da cultura e da história que homens e mulheres conhecem pela vivência cotidiana, buscando com eles(as) descobrir que tudo é resultado das relações dos membros da espécie humana com o mundo, mas que esta realidade ao mesmo tempo condiciona aos seres humanos, seus criadores.[1]
Na medida em que o conhecimento do mundo exterior vai mudando, muda também o ser humano; modifica-se a visão, a concepção e a postura de homens e mulheres para com este mundo, modifica-se o seu sentir/pensar/agir. Se antes a realidade do mundo era vista como algo mágico, "sendo assim porque tem que ser", agora ela se apresenta como possibilidade, como horizonte de aventura histórica, onde cada um(a) pode ser mais, sendo conscientemente no mundo, com o mundo, através da reflexão e ação transformadora, do compromisso histórico de ser o sujeito do mundo no qual e com o qual vai se humanizando. Isto é conscientização, que é muito mais do que a mera tomada de consciência: é ação consciente, intencional, comprometida e transformadora.
Diante da crescente busca de significado para as coisas e da reflexão de que valores devem ou não permanecer no nosso cotidiano, surge à necessidade de “saber ler”, ou seja, ler o que está escrito nas entrelinhas, ler o mundo, uma vez que “a leitura de mundo precede a leitura da palavra, daí a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele” (FREIRE, 1982, p.11). Por isto, é fundamental que o educador tenha a clareza de que a leitura do mundo acontece antes da leitura da escrita.
No dia a dia das suas vidas, as pessoas “pronunciam” o seu mundo, mesmo que não saibam “ler e escrever”; os seres humanos lêem além das palavras, lêem o mundo ao seu redor e, por isso, para que a leitura seja realmente compreendida é preciso que se consiga estabelecer relações daquilo que se leu com a realidade vivenciada.
Propor-se a trabalhar com literatura infantil, sobretudo com crianças e adolescentes que muitas vezes estão à margem de processos e relações sociais mais humanos e cidadãos, configura-se como uma atividade que na sua essência é dialógica e participativa, desde o momento da escolha das histórias a serem lidas até a interpretação e produção de sentidos e, quiçá, de outros finais para as mesmas histórias, ou, então a criação de novas histórias mais significativas e interessantes para o mundo em que meninos e meninas vivem... ou ajudem a construir um outro mundo em que eles e elas sonham um dia poder viver.
Então, para que os livros infantis e as histórias infantis não estejam a serviço de uma cultura hegemônica, a serviço da perpetuação de regras, normas, valores dos grupos dominantes é preciso que desde cedo todos e todas tenham alguém que desperte o desejo de ouvir, ler e escrever histórias infantis, levando à imaginação e/ou a pensamentos jamais visitados. Ler, debater, imaginar, criar e escrever devem ser uma aventura cheia de idas e vindas, possibilitando reflexões, contestações, posicionamentos, sonhos, projetos, ações... “inéditos viáveis”.


 Veja-se que em todo o processo de alfabetização de adultos(as), Paulo Freire propunha sempre partir de Palavras Geradoras levantadas junto ao povo, na sua cotidianidade, para depois decodificá-las pelo diálogo problematizador (com eles/as) e assim chegar a uma nova consciência sobre a realidade, a cultura, e sobre a concepção dos(as) trabalhadores(as) sobre si mesmos(as).  

Isto é conscientização, que é muito mais do que a mera tomada de consciência: é ação consciente, intencional, comprometida e transformadora.
Diante da crescente busca de significado para as coisas e da reflexão de que valores devem ou não permanecer no nosso cotidiano, surge à necessidade de “saber ler”, ou seja, ler o que está escrito nas entrelinhas, ler o mundo, uma vez que “a leitura de mundo precede a leitura da palavra, daí a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele” (FREIRE, 1982, p.11). Por isto, é fundamental que o educador tenha a clareza de que a leitura do mundo acontece antes da leitura da escrita.
No dia a dia das suas vidas, as pessoas “pronunciam” o seu mundo, mesmo que não saibam “ler e escrever”; os seres humanos lêem além das palavras, lêem o mundo ao seu redor e, por isso, para que a leitura seja realmente compreendida é preciso que se consiga estabelecer relações daquilo que se leu com a realidade vivenciada.
Propor-se a trabalhar com literatura infantil, sobretudo com crianças e adolescentes que muitas vezes estão à margem de processos e relações sociais mais humanos e cidadãos, configura-se como uma atividade que na sua essência é dialógica e participativa, desde o momento da escolha das histórias a serem lidas até a interpretação e produção de sentidos e, quiçá, de outros finais para as mesmas histórias, ou, então a criação de novas histórias mais significativas e interessantes para o mundo em que meninos e meninas vivem... ou ajudem a construir um outro mundo em que eles e elas sonham um dia poder viver.
Então, para que os livros infantis e as histórias infantis não estejam a serviço de uma cultura hegemônica, a serviço da perpetuação de regras, normas, valores dos grupos dominantes é preciso que desde cedo todos e todas tenham alguém que desperte o desejo de ouvir, ler e escrever histórias infantis, levando à imaginação e/ou a pensamentos jamais visitados. Ler, debater, imaginar, criar e escrever devem ser uma aventura cheia de idas e vindas, possibilitando reflexões, contestações, posicionamentos, sonhos, projetos, ações... “inéditos viáveis”.

4. DESENVOLVIMENTO


O projeto “Hora do Conto: Meninos e Meninas lendo o mundo e a palavra” pode ser classificado como extensão e pesquisa. Além das histórias, dinâmicas e textos, optamos pelo “diálogo-problematizador”, uma forma de oportunizar a todos e todas para que digam a “sua palavra”, desenvolvam a sua leitura de mundo, baseados(as) no contexto sócio-histórico, nas suas vivências, nos diferentes processos de escolarização, sempre a partir do lugar, circunstâncias e vozes que os contextualizam e lhes podem dar sentido.

4.1. Sujeitos e Contextos...
A primeira Instituição a receber o nosso Projeto, em 2010, foi o Lar das Vovozinhas; instituição filantrópica que abriga aproximadamente 200 senhoras, em estado de vulnerabilidade e debilitação física e mental, muitas vezes sucedido pelo abandono familiar. Para desenvolvermos este projeto, inicialmente convidamos os alunos da escola Antônio Alves Ramos (Patronato); levamos os alunos e seus familiares, interessados em para conhecer a realidade do lar, para uma primeira visita.
No primeiro encontro no Lar, contamos com a participação 20 senhoras, porém, no decorrer do Projeto percebeu-se a dificuldade de locomoção das mesmas e a desmotivação para participarem de atividades lúdicas, uma vez que diziam “estar esperando pela morte”. Necessário se fez, então, repensar nossa proposta; e constatamos de que precisaríamos primeiramente estabelecer relações afetivas, razão pela qual passamos a ir semanalmente ao lar, apenas para ouví-las (ou, então, apenas abraçá-las e dar-lhe atenção e carinho). Na medida em que os encontros foram acontecendo percebemos que éramos recebidas com muita espera. A partir deste momento começamos a construir espaços para contar e ouvir histórias, tanto infantis quanto de vidas.
A segunda instituição na qual desenvolvemos o nosso projeto foi a Escola Municipal de Ensino Fundamental João Hundertmarck, localizada na zona rural de Santa Maria. Começamos a desenvolver o projeto nesta escola e, para nossa surpresa, a maioria de seus educandos são oriundos da zona urbana de Santa Maria. Para iniciarmos o trabalho, optamos em ouvi-los, conhecendo suas identidades, suas auto-imagens, a partir de uma dinâmica com os seus nomes. As dinâmicas por si só não garantem a participação efetiva das pessoas, mas o ambiente construído de cooperação, de diálogos, de escuta e, principalmente, de amorosidade é que permite aos seres humanos sentirem-se autônomos e com autoria, sujeitos desse momento, levando-os a contarem suas histórias e fazerem a relação texto-contexto. Para isso é preciso nos exercitarmos para aprender a ouvir, a criar, a trabalharmos cooperativamente, criando ambientes de amorosidade, de escuta e de respeito; a capacidade participativa que cada ser humano por natureza possui precisa ser (re)aprendida, e  assim não negarmos a legitimidade do outro. Dentro deste contexto, oportunizamos a cada um ver o mundo, a ler o mundo, a descobrir e redescobrir o mundo e as maneiras (sua e dos outros) de ser gente nesse mundo.
Desde o início do Projeto, idealizamos práticas a partir das histórias infantis que poderiam ser desenvolvidas em todas as três instituições. No entanto, na terceira instituição em que esse Projeto foi desenvolvido, o Recanto da Esperança, foi um pouco diferente. Nos deparamos com a realidade de jovens e adolescentes, em situação de risco; jovens e meninos que lá estão encaminhados pelo Conselho Tutelar. Ao iniciarmos o Projeto neste local oencontramos meninos excluídos da sociedade, desacreditando da possibilidade de aproximação para ajudá-los, pois diziam que “as pessoas que iriam até lá, o faziam somente para julgá-los”. Percebemos uma insegurança ao mentirem sobre suas identidades e suas histórias, e também porque em alguns momentos usavam uma linguagem própria do grupo para que não fossemos entendidos. Percebemos, com isto, que o trabalho a ser desenvolvido naquele ambiente exigiria um pouco mais de nós, no sentido de mais pesquisas, reflexões com o grupo, bem como a busca de novos recursos que pudessem despertar/instigar o interesse daqueles menores adolescentes. Dessa maneira, entendemos estar desenvolvendo um projeto que “[...] além da participação, supõe uma forma de ação planejada de caráter social, educacional, [...] Trata-se de facilitar a busca de soluções aos problemas reais para os quais os procedimentos convencionais têm pouco contribuído” (THIOLLENT, 2002, p. 08).
Através da palavra é possível o ser humano se expressar, expressar seu mundo interior para se comunicar com o mundo exterior; assim, a leitura é uma via para formação da consciência e de uma outra “visão e leitura de mundo”, como dizia Paulo Freire.

5. METODOLOGIA



O projeto Hora do Conto: Meninos e Meninas lendo o Mundo e a Palavra inicialmente é um projeto de extensão, mas também torna-se lócus de pesquisa. Além das histórias, dinâmicas e textos, optamos pelo “diálogo-problematizador”, como forma de oportunizar a todos “dizerem a sua palavra”, fazer a sua leitura de mundo, baseados no contexto sócio-histórico, nas suas vivências, nos diferentes processos de escolarização, sempre a partir do lugar, das circunstâncias e das vozes que os contextualizam e lhes podem dar sentido.
Dessa maneira, entendemos estar desenvolvendo um projeto que “[...] além da participação, supõe uma forma de ação planejada de caráter social, educacional, [...] Trata-se de facilitar a busca de soluções aos problemas reais para os quais os procedimentos convencionais têm pouco contribuído” (Thiollent, 2002, p. 08).
As atividades são destinadas aos alunos da educação infantil até o 5° ano do ensino fundamental das Escolas Municipais, Estaduais e Particulares de Santa Maria, especialmente a crianças e adolescentes das Aldeias SOS e as “meninas” idosas do Lar das Vovozinhas, uma vez por semana, atendendo as crianças da comunidade e escolas da região, inicialmente no período de abril a dezembro de 2011 (ficando em aberto a possibilidade de o mesmo prosseguir em 2011). Diferentemente de como vinha acontecendo anteriormente, as crianças e adolescentes envolvidas começarão a participar da escolha das histórias a serem trabalhadas; para tanto, inicialmente abrir-se-á espaço para que elas contem a suas histórias de vida e “leituras de mundo”.
Assim, este projeto também tem o objetivo de desenvolver atividades lúdicas envolvendo os participantes (crianças e idosas), valorizando as experiências que cada uma traz durante as horas do conto, registrando-as em relatórios e apresentando-as em eventos educacionais.