sábado, 2 de junho de 2012

3. ERA UMA VEZ...


Geralmente a linha divisória entre a pré-história e a história é atribuída ao tempo em que sugiram os registros escritos. A leitura e a escrita foram os marcos das civilizações antigas. Até os dias atuais, campanhas são feitas para o incentivo da leitura e da escrita das palavras porém, muitos esquecem daquilo que Paulo Freire chamou de “leitura do mundo”. Ao falar em “leitura do mundo”, lembro de Brandão (2005, p. 17-18) que diz:
Quando a gente vai para a escola,  alguns adultos dizem: ‘Vai estudar para ver se você aprende alguma coisa!’ Não é mesmo? Mas elas esquecem que, quando uma criança chega à escola, ela já sabia muita coisa. Ela já tinha aprendido muito mesmo. Primeiro, ela aprendeu com a Vida, aprendeu com o mundo onde ela vive. Aprendeu com os outros: a mãe-e- o- pai, os irmãos e as irmãs mais velhas, os primos e os outros parentes. Aprendeu com as amigas e os amigos de mesma idade. Aprendeu com a vida. Pois a vida que a gente vai vivendo, um pouquinho a cada dia, é uma ótima e incansável professora de cada uma de nós e de cada um de nós.
                Como Brandão bem diz, estamos sempre aprendendo, mesmo quando pensamos estar ensinando. Em uma ocasião, trabalhávamos com o livro: “As Aventuras da família Tamanduá” de Jô Oliveira e Nira Foster que conta a história de uma família de tamanduás que morava em uma fazenda abandonada. Certa vez um homem compra a fazenda e começa a fazer muitas modificações entre elas, expulsa a família de suas terras. Sem ter para onde ir, a família vai morar em baixo da ponte e na fazenda muitas coisas ruins começam a acontecer. O fazendeiro mexe no equilíbrio ecológico do lugar através do uso indiscriminado de agrotóxicos. Assim, se vê obrigado a ir buscar a família de tamanduás para resolver a questão.
            Tínhamos como objetivo principal discutir as questões voltadas ao meio ambiente, entretanto comecei a perceber uma certa troca de olhares, fisionomias que se modificavam a cada página contada, e ao concluir a história alguns questionamentos e depoimentos surgiram. Quando usamos a expressão “invasão” para descrever o modo como a família tamanduá vivia muitas crianças que tinha entre 9 a 11 anos disseram: “Não era uma invasão! Os tamanduás se apropriaram de terras improdutivas”. Neste momento percebi que a maioria deles já havia vivenciado ou vivencia situações semelhantes as da história. E então, começamos a discutir a questão que um menino levantou: “Porque uns tem tanta terra e outros não tem nada?”. Chegamos ao consenso que as “terras” como eles dizem, são mal distribuídas e que todos deveriam ter uma “parte igual” pois assim, todos teríamos as mesmas condições terminando com as diferenças.
            Mas o final da história nos reservava grandes surpresas. Ao lembrar que o “patrão” teve que ir a busca da família as opiniões ficaram divididas, uns acreditavam que a família   não deveria voltar, pois haviam sido humilhados, outros, preocupavam-se com as condições que o fazendeiro ofereceria para ter a família de volta. Esta história, diferentemente da história de vida de cada um, termina com a família na fazenda, em uma bonita casa construída pelo patrão e cedida à família Tamanduá, que recebera algumas terras e lugar para trabalhar.
Quando o texto parecia ter se esgotado, surgiu então a proposta de criar um novo final para esta história e muitas surpresas vieram. Alguns decidiram que os Tamanduás expulsariam o fazendeiro das terras, já outros, propuseram uma sociedade entre eles.
            Dessa maneira refletimos com FREIRE (2000, p. 76), quando diz:

A consciência do mundo que implica a consciência de mim no mundo, com ele e com os outros, que implica também a nossa capacidade de perceber o mundo, de compreendê-lo, não se reduz a uma experiência racionalista. É como uma totalidade – razão, sentimentos, emoções, desejos -, que meu corpo consciente do mundo e de mim capta o mundo a que se intenciona.
            Assim, ao decidirmos utilizar uma proposta freireana, percebemos que alguns “ajustes” precisam ser feitos. Adotando uma pedagogia comprometida com o homem em seu contexto histórico-social, no sentido de orientar consciente e criticamente a libertação das pessoas, jamais podemos cair no erro de escolher as histórias ou levá-las pronta, pois assim estaríamos manipulando os pensamentos e opiniões.  Nosso objetivo é promover a discussão corajosa da problemática e o constante diálogo com o outro.         
Nesta perspectiva, os educadores somos desafiados a oportunizar à criança a ver o mundo, a ler o mundo, a descobrir o mundo e as maneiras de ser gente neste mundo, contribuindo também para a construção de uma cultura humanizadora. Entretanto, a aprendizagem começa antes da aprendizagem das letras; quando se estimula o prazer em ouvir algo ou alguém se aguça a curiosidade de ler, de pensar, de ter autonomia para descobrir histórias que estão dentro de um livro. Essa aprendizagem que a criança vai construindo, ao ser estimulada desde a infância, oportuniza a construção de um ambiente dialógico, onde ela cresce comungando com a vida, não estando à serviço do cumprimento de regras e programas, exigências sem função prática e aplicabilidade a favor da vida. “Semeando” a criticidade e a criatividade, os horizontes se ampliam; ademais, a criança vai aprendendo a participar das decisões e permitir a participação do outro.
A partir do respeito à individualidade e as singularidades de que cada um, se pode ir construindo o coletivo e o bem-comum, garantindo formas de participação para que as pessoas vivam relações solidárias e justas em igualdade de condições, vivenciando sua cidadania. Assim, para que ocorram mudanças nas inter-relações e nas relações sociais, é necessário que cada ser humano integrante da comunidade escolar esteja comprometido com o processo educacional, de forma que todos sintam-se sujeitos, desde o momento de  partilhar e defender idéias, construir regras, propostas, estratégias. Somos aprendizes da arte de usar a palavra em defesa do que acreditamos, porém ainda temos dificuldades em ouvir e aceitar a idéia do outro, em entender que várias idéias, várias culturas podem construir caminhos novos, culturas novas e novas formas de organizar a vida, a escola e a sociedade.
Neste sentido, as histórias infantis têm muito a contribuir, trazendo significado para a criança quando diz algo a respeito da sua vida e do seu mundo. Uma história só prenderá a atenção quando desperta sua curiosidade, estimula a imaginação, ajuda a desenvolver o intelecto, torna mais claras as suas emoções, vem ao encontro das suas ansiedades e aspirações, reconhece as limitações e dificuldades e, ao mesmo tempo, sugere soluções para os problemas que a perturbam.
Ao ouvir uma história a criança fica presa às cenas, imaginando as possíveis seqüências e soluções. O uso de recursos concretos como gravuras, fantoches, maquetes permitem a visualização da história, estimulando a imaginação e concretização das cenas. A ação de ler e contar histórias às crianças permite a concretização das idéias abstratas, relacionando a realidade com as cenas que se sucedem. Essa leitura do mundo antecede a leitura da palavra, gerando uma compreensão do lido a partir do visto, do vivido, do experienciado. Daí a importância de conhecer o contexto sócio-histórico-cultural para trabalhar as diferentes histórias infantis dentro e a partir da realidade, apontando caminhos, possibilidades para a construção de uma nova cultura organizacional, democrática e humanizadora.
Segundo Lajolo & Zilberman (1991), a literatura infantil aguça um imaginário peculiar nas crianças, o qual pode dar-se em duas direções:

De um lado, reproduz e interpreta a sociedade nacional, avaliando o processo acelerado de modernização, nem sempre aceitando-o com facilidade, segundo se expressam narradores e personagens. [...] De outro lado, dá margem à manifestação do mundo infantil, que se aloja melhor na fantasia, e não na sociedade, opção que sugere uma resposta à marginalização a que o meio empurra a criança (Ibidem, 67).

Sim, as histórias infantis trazem em si uma dimensão ideológica, social e histórica conforme o período em que são criadas, contendo valores, conflitos, idéias existentes de acordo com cada época e cultura. Não se trata de não ler e dialogar sobre as histórias dos mais diferentes autores, mas sempre trabalhando no sentido de a, a partir delas, as crianças poderem “dizer a sua palavra”, manifestando a sua “leitura de mundo” e os seus sonhos de “inéditos viáveis”, como tão belamente nos tem proposto o educador Paulo Freire.
Tendo em vista que proporcionar à criança contato com as histórias infantis é respeitá-la enquanto ser humano e leitora, é interessante reforçar a importância delas como um recurso para a motivação e iniciação da leitura da palavra e do mundo. Freire(2001) afirma que mesmo depois de alfabetizados, os indivíduos não deixam de “ler” o mundo ao seu redor. Para que uma leitura seja realmente compreendida, é preciso estabelecer relações com a realidade, pois a aprendizagem da linguagem escrita se dá a nível profundo, não somente no nível de memorização de palavras ou textos. Neste sentido, as histórias infantis podem despertar emoções, posicionamentos e ações para buscar alternativas para modificar o seu ambiente.
O ser humano é criador do seu conhecimento, é aprendiz e sujeito do processo histórico em que vem sendo, sobretudo pela mediação da linguagem, pronunciando a si e a seu mundo com as palavras que vai aprendendo: primeiramente repetindo as palavras dos outros, depois dizendo a sua própria palavra. No momento que ouve, lê, fala, escreve.... algo mexe com suas razões-emoções, desafiando-o a tomar nas mãos a sua trajetória histórica de homem e/ou mulher. Essa processualidade pode começar por meio da criação histórias orais e escritas, criando a possibilidade de vislumbrar, de desejar e projetar muitas transformações.
A necessidade de conhecer e intervir no mundo exige uma certeza de que aprender não se resume em acreditar que tudo é certo e nem de estarmos demasiadamente certos de nossas certezas.  Freire (1998, p.30) nos ajuda a refletir sobre nossa prática quando diz que é problematizando, dialogando, fazendo releituras, contextualizando que vamos fazendo novas descobertas, uma vez que

a leitura verdadeira me compromete de imediato com o texto que a mim se dá e a que me dou e de cuja compreensão fundamental me vou  tornando também sujeito. Ao ler não me acho no puro encalço da inteligência do texto como se fosse ela produção apenas de seu autor ou de sua autora. Esta forma viciada de ler não tem nada que ver, por isso mesmo, com o pensar certo e com o ensinar certo.

O ato de ler, contar histórias encerrando a exploração do texto como se a palavra do autor fosse à verdade absoluta, como se a entonação do contador desse à história um ponto final para o que está escrito nas entrelinhas, a interpretação do educador como única, a história fechada em si não ajuda aos educadores e educandos se tornarem críticos, tendo uma visão contextualizada. Mesmo na ilustração de um livro podemos criar, fazer novas leituras, perceber detalhes que o autor não explorou, porque as visões e leituras de mundo variam conforme a sua cultura e a sua experiência vivida. No momento em que o educando se coloca no lugar dos personagens, brinca com eles, recria e reconta histórias está intervindo, construindo novas alternativas, colocando-se como sujeito, autor da história e de sua própria história de vida.
A inserção crítica do ser humano no mundo se dá como corpo consciente, graças à sua sensibilidade ao contexto e à sua capacidade de reflexão; sem experimentar a realidade e sobre ela refletir não há criticidade, não há conscientização, não há ação transformadora. Por isso, para possibilitar este re-encontro de cada homem e cada mulher consigo mesmo(a) e com o mundo, qualquer esforço educativo libertador deve, através da dialogicidade problematizadora e crítico-reflexiva, sempre partir da realidade, da visão que cada um e cada uma tem do mundo, do trabalho, do conhecimento ou de um determinado assunto; partir do sentir/pensar/agir presente nas concepções e ações dos(as) sujeitos, para a elas retornar com um novo enfoque, capaz de conscientemente forjar novas visões e ações transformadoras. Uma razão-emoção crítico-reflexiva reconhece que homens e mulheres estão em constante interação com a realidade, exercendo sobre ela uma ação transformadora e sendo condicionados(as) pelos resultados desta transformação. É fundamental partir sempre da problematização do mundo do trabalho, das idéias, dos mitos, das crenças, das convicções, das obras, dos produtos, das artes, das ciências, das aspirações, enfim, do mundo da cultura e da história que homens e mulheres conhecem pela vivência cotidiana, buscando com eles(as) descobrir que tudo é resultado das relações dos membros da espécie humana com o mundo, mas que esta realidade ao mesmo tempo condiciona aos seres humanos, seus criadores.[1]
Na medida em que o conhecimento do mundo exterior vai mudando, muda também o ser humano; modifica-se a visão, a concepção e a postura de homens e mulheres para com este mundo, modifica-se o seu sentir/pensar/agir. Se antes a realidade do mundo era vista como algo mágico, "sendo assim porque tem que ser", agora ela se apresenta como possibilidade, como horizonte de aventura histórica, onde cada um(a) pode ser mais, sendo conscientemente no mundo, com o mundo, através da reflexão e ação transformadora, do compromisso histórico de ser o sujeito do mundo no qual e com o qual vai se humanizando. Isto é conscientização, que é muito mais do que a mera tomada de consciência: é ação consciente, intencional, comprometida e transformadora.
Diante da crescente busca de significado para as coisas e da reflexão de que valores devem ou não permanecer no nosso cotidiano, surge à necessidade de “saber ler”, ou seja, ler o que está escrito nas entrelinhas, ler o mundo, uma vez que “a leitura de mundo precede a leitura da palavra, daí a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele” (FREIRE, 1982, p.11). Por isto, é fundamental que o educador tenha a clareza de que a leitura do mundo acontece antes da leitura da escrita.
No dia a dia das suas vidas, as pessoas “pronunciam” o seu mundo, mesmo que não saibam “ler e escrever”; os seres humanos lêem além das palavras, lêem o mundo ao seu redor e, por isso, para que a leitura seja realmente compreendida é preciso que se consiga estabelecer relações daquilo que se leu com a realidade vivenciada.
Propor-se a trabalhar com literatura infantil, sobretudo com crianças e adolescentes que muitas vezes estão à margem de processos e relações sociais mais humanos e cidadãos, configura-se como uma atividade que na sua essência é dialógica e participativa, desde o momento da escolha das histórias a serem lidas até a interpretação e produção de sentidos e, quiçá, de outros finais para as mesmas histórias, ou, então a criação de novas histórias mais significativas e interessantes para o mundo em que meninos e meninas vivem... ou ajudem a construir um outro mundo em que eles e elas sonham um dia poder viver.
Então, para que os livros infantis e as histórias infantis não estejam a serviço de uma cultura hegemônica, a serviço da perpetuação de regras, normas, valores dos grupos dominantes é preciso que desde cedo todos e todas tenham alguém que desperte o desejo de ouvir, ler e escrever histórias infantis, levando à imaginação e/ou a pensamentos jamais visitados. Ler, debater, imaginar, criar e escrever devem ser uma aventura cheia de idas e vindas, possibilitando reflexões, contestações, posicionamentos, sonhos, projetos, ações... “inéditos viáveis”.


 Veja-se que em todo o processo de alfabetização de adultos(as), Paulo Freire propunha sempre partir de Palavras Geradoras levantadas junto ao povo, na sua cotidianidade, para depois decodificá-las pelo diálogo problematizador (com eles/as) e assim chegar a uma nova consciência sobre a realidade, a cultura, e sobre a concepção dos(as) trabalhadores(as) sobre si mesmos(as).  

Isto é conscientização, que é muito mais do que a mera tomada de consciência: é ação consciente, intencional, comprometida e transformadora.
Diante da crescente busca de significado para as coisas e da reflexão de que valores devem ou não permanecer no nosso cotidiano, surge à necessidade de “saber ler”, ou seja, ler o que está escrito nas entrelinhas, ler o mundo, uma vez que “a leitura de mundo precede a leitura da palavra, daí a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele” (FREIRE, 1982, p.11). Por isto, é fundamental que o educador tenha a clareza de que a leitura do mundo acontece antes da leitura da escrita.
No dia a dia das suas vidas, as pessoas “pronunciam” o seu mundo, mesmo que não saibam “ler e escrever”; os seres humanos lêem além das palavras, lêem o mundo ao seu redor e, por isso, para que a leitura seja realmente compreendida é preciso que se consiga estabelecer relações daquilo que se leu com a realidade vivenciada.
Propor-se a trabalhar com literatura infantil, sobretudo com crianças e adolescentes que muitas vezes estão à margem de processos e relações sociais mais humanos e cidadãos, configura-se como uma atividade que na sua essência é dialógica e participativa, desde o momento da escolha das histórias a serem lidas até a interpretação e produção de sentidos e, quiçá, de outros finais para as mesmas histórias, ou, então a criação de novas histórias mais significativas e interessantes para o mundo em que meninos e meninas vivem... ou ajudem a construir um outro mundo em que eles e elas sonham um dia poder viver.
Então, para que os livros infantis e as histórias infantis não estejam a serviço de uma cultura hegemônica, a serviço da perpetuação de regras, normas, valores dos grupos dominantes é preciso que desde cedo todos e todas tenham alguém que desperte o desejo de ouvir, ler e escrever histórias infantis, levando à imaginação e/ou a pensamentos jamais visitados. Ler, debater, imaginar, criar e escrever devem ser uma aventura cheia de idas e vindas, possibilitando reflexões, contestações, posicionamentos, sonhos, projetos, ações... “inéditos viáveis”.

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